domingo, 16 de maio de 2021

PARA A FOME NÃO VOLTAR Ex-ministra Tereza Campello fala sobre caminhos para vencer a insegurança alimentar no Brasil

Algumas das imagens mais reproduzidas no Brasil durante a pandemia mostram geladeiras vazias e entregas de cestas básicas. Da saída do país do Mapa da Fome em 2013 aos dias atuais, em que mais da metade dos brasileiros conviveu com alguma insegurança alimentar no fim de 2020, a impressão é a de que se passaram décadas, tamanho o salto. Os dados alarmantes apontam para a urgência de se retomar políticas públicas que priorizem o sustento da população. Para Tereza Campello, pesquisadora, professora e ex-ministra de Desenvolvimento Nacional e Combate à Fome, o fenômeno que vemos não é isolado, mas alavanca um cenário progressivo de desassistência e desmonte de políticas sociais.
Exemplo de como as decisões políticas são determinantes é a indústria de alimentos. "O país continua sendo um dos maiores produtores do mundo, mesmo na pandemia. Aliás, produzir muito entrou na contramão da própria segurança alimentar da população: a gente exportou nosso arroz aproveitando os preços internacionais (o que encareceu internamente o grão). A falta de alimento saudável para a população brasileira não é resultado da falta da produção, muito menos de condições naturais", pontua Campello, economista e doutora em Saúde Pública que hoje leciona na Escola Fiocruz de Governo e é professora visitante da Universidade de São Paulo, atuando no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens). A palavra-chave, então, é acesso. Para Campello, que integrou a equipe que criou o Bolsa Família e coordenou o Plano Brasil Sem Miséria, a solidariedade e a filantropia que vemos agora são um movimento importante e bem-vindo, mas que deveria ser complementar. "Ninguém vai conseguir dar conta de milhões de famintos com doações e trabalho voluntário. O central deve ser a política pública, que pode dar escala", diz. Sua atuação na universidade hoje é justamente produzindo conhecimento sobre essas bases. Ecoa - Como você avalia o impacto tanto da pandemia quanto da forma como as políticas de combate à fome vêm sendo administradas nesses dados? Tereza Campello - Como a pesquisa com esse olhar começa em 2004, o que a gente sabe é que está muito pior, mas não sabe até onde voltou. É um salto gigantesco. Lá havia 34% da população em insegurança alimentar, passando para 55%. Existe uma tendência grande de olhar a covid, mas o contexto já era de piora - em 2018 já tinha piorado muito. O Brasil tinha conseguido um fato histórico que é, em um período muito curto, reduzir a insegurança alimentar: passamos de 65% para 77% em situação de segurança (de 2004 a 2013) e depois [esse percentual] começa a cair. A insegurança alimentar é parte da nossa história, o que não é parte dela é a segurança alimentar. A fome, o medo de não saber o que vai comer são a marca da história brasileira, e isso era tratado como natural e atribuído inclusive a fenômenos naturais: "no Brasil sempre teve fome", "sempre teve pobreza". Dependendo do momento as explicações eram variadas: "ah, é por causa da seca", quando você tem os grandes êxodos na década de 1970. Como diria [o médico e geógrafo] Josué de Castro, sempre se busca uma explicação natural ou biológica para um fenômeno político e social. E agora a covid é a responsável. Então a pergunta que acho que vai na contramão dessa naturalização da fome é: como a gente tinha revertido esse quadro em menos de dez anos?Ações eficazes contra a fome Liderança política "Assumir que a fome e a insegurança alimentar são um problema é importante porque você se responsabiliza e traz junto outros atores políticos -- estados e municípios. E custa, mas eu acho que custa menos do que não fazer. É o oposto do que está ocorrendo hoje, em que o presidente diz que o Brasil não tem fome, ali ele dá um sinal de que isso não é um problema." Acesso "Apesar de o Brasil ser um grande produtor de alimento, o povo passava fome porque não tinha acesso a ele. Aí não se trata apenas de transferência de renda: é o aumento do salário mínimo, empregos formais, aposentadoria, porque isso também é algo que vem sendo desvalorizado. Há um dado na pesquisa da Penssan [Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional] que não foi muito valorizado: a insegurança alimentar é seis vezes maior quando se está desempregado. E quatro vezes maior para quem está no mercado informal." Merenda escolar "Uma política importante que está em risco. Não é só a covid, há um movimento de mudança dentro e fora do governo que questiona a merenda no modelo que ela vem sendo construída. A nova legislação de 2009 não só tem um conjunto de orientações, como exige que a merenda seja comprada de produtores locais, que tenha uma porção de frutas e verduras. Não é fácil [aplicá-la], mas é um caminho muito saudável e nutritivo, e essa política passou a ser referência no mundo." Agricultura familiar "Talvez [seja] a política mais em risco hoje. O agricultor não só perde o canal das compras públicas na medida em que a merenda deixa de o priorizar, mas as cadeias se desorganizam. [Com a pandemia] parte dos agricultores abandonou o campo. Esse agricultor vai para a cidade e engrossa o mercado de trabalho precário, fica sem proteção, não volta. E a tendência é que essa terra vá parar na mão do grande produtor, com concentração e expansão da monocultura, porque ele não vai produzir de forma diversificada como o agricultor familiar. Isso vai ser um efeito colateral trágico da covid. E não é culpa do vírus, mas resultado da forma predatória como se produz comida."